terça-feira, 1 de abril de 2008

Bento Caraça

Cultura e Revolução

(Intervenção no

Palácio de Cristal

24 – 11 – 1978)

Amigos!

Ao recordarmos o que foram a vida e a obra de Bento de Jesus Caraça, fomos naturalmente levados a pensar na vida e na obra do físico Paul Langevin.

É verdade que há apreciável diferença, quantitativa e qualitativa, entre a produção científica de Paul Langevin e a produção científica de Bento Caraça – o que bem se compreende, se se tiver em conta a enormíssima diferença entre o meio científico francês e o meio científico português. As oportunidades que um e outro meio oferecem a quem pretenda seguirem pelo caminho da investigação são muitíssimo desiguais.

No entanto, sob muitos outros aspectos, as vidas dos dois grandes cidadãos, o físico francês Paul Langevin e o matemático português Bento Caraça, apresentam-se-nos como muito semelhantes.

Assim, ambos foram brilhantes professores que viveram apaixonadamente a sua profissão, ambos desenvolveram intensa acção cultural para além dos que foram seus alunos e para além das suas escolas, ambos pugnavam tenazmente pela democratização do ensino e da cultura, ambos foram destacados militantes antifascistas, ambos se dedicaram a cimentar a unidade de acção de todas as correntes antifascistas, ambos foram perseguidos e presos – Langevin, pela Gestapo e Bento Caraça, pela Pide – ambos, pelos seus actos e pelas suas palavras, se afirmaram sempre partidários da Paz entre os Povos, ambos lutaram persistentemente e abnegadamente pela libertação económica dos seus povos, ambos abraçaram a causa do socialismo.

Na verdade, ambos foram intelectuais comprometidos com a libertação dos seus povos, ambos tinham, fundamentalmente, o mesmo conceito de cultura.

Segundo Langevin, vai-se tornando cada dia mais claro que a unidade de todos os trabalhadores – quer manuais, quer intelectuais – é essencial à construção do mundo novo – mundo sem fome e sem guerra, mundo de justiça e de liberdade.

As diversas formas de actividade humana, manuais e espirituais, após uma separação de tantos séculos, voltam a encontrar-se por força da sua própria evolução e fecundam-se mutuamente e essa fecundação permitirá a libertação material e espiritual, permitirá uma vida melhor para todos.

Daqui nasce também, segundo Langevin, um sentimento de solidariedade entre todos os trabalhadores, daqui nasce um interesse comum a todos os trabalhadores, manuais e intelectuais, interesse que se confunde com o interesse mais profundo da espécie humana, a sua própria sobrevivência.

Ora, não há liberdade efectiva sem independência económica e a conquista da independência económica exige a utilização dos meios de acção concebidos pela ciência. Assim, os trabalhadores manuais, na luta pela sua libertação, na luta pela sua sobrevivência, não podem prescindir dos trabalhadores intelectuais.

Por outro lado, o desenvolvimento da ciência só é possível, utilizando-se os meios materiais criados pela técnica. Assim, os trabalhadores intelectuais, para o desenvolvimento do seu próprio trabalho, para a sua própria sobrevivência, não podem prescindir dos trabalhadores manuais.

A criação de tais meios materiais oferecidos pela técnica exige o recrutamento de muitos homens, exige o aproveitamento de todas as aptidões intelectuais, exige que o direito à educação não seja letra morta.

É ainda Langevin quem afirma que tanto a ciência como a técnica exigem formação intelectual, cada vez mais elevada, para todos os trabalhadores. A fecundação da acção pelo pensamento, da faculdade de actuar pela preocupação de compreender, é comum a todas as formas de actividade humana.

Estas ideias de Paul Langevin vêm expressas num artigo escrito para o jornal Vie Ouvrière, por ocasião do 1º de Maio de 1937.

Já antes, em 1931, Paul Langevin tinha afirmado que

«a cultura geral é aquilo que permite ao indivíduo sentir plenamente a sua solidariedade com os outros homens, no espaço e no tempo, com os homens da sua geração como com as geração que a precederam e com as gerações que virão depois. Ser culto é, portanto, ter recebido e desenvolver constantemente uma iniciação às diferentes formas de actividade humana, independentemente daquelas que correspondem à profissão, de maneira a poder estar amplamente em contacto, em comunhão com os outros homens.»

Afirmações semelhantes foram feitas repetidas vezes por Langevin, nomeadamente no 1º Congresso Internacional de Educadores, realizado em Nice, em 1932.

Estas ideias de solidariedade com os outros homens, tão bem sublinhada por Langevin a propósito do conceito de cultura, foi, pela mesma altura, posta em relevo, com toda a clareza, por Bento Caraça.

Com efeito, em 22 de Março de 1931, numa conferência realizada na Universidade Popular de Setúbal, Bento Caraça declarou:

«Deve ainda a cultura tender ao desenvolvimento do espírito de solidariedade. Não apenas de cada um com os da sua família, da sua aldeia ou da sua pátria – solidariedade do homem com os outros homens de todo o Mundo

E Bento Caraça acrescenta:

«Este internacionalismo não significa de modo algum a destruição da pátria, antes pelo contrário, implica a sua consolidação e o seu alargamento a todas as nacionalidades – a formação da pátria humana. O coração do homem é grande e nele cabe o amor da sua nacionalidade ao lado do amor de toda a humanidade.»

Nessa mesma conferência, Bento Caraça formula as perguntas:

«Quem deve ser detentor da cultura? A massa geral da humanidade ou parte dela?

Para responder a estas perguntas, Bento Caraça começa por observar que

«Esta questão põe-nos em frente do problema das elites e das castas e a experiência histórica ensina que sempre que um grupo se diferencia da massa geral da humanidade, por qualquer título, estabelecendo um monopólio de qualquer coisa – ideias, força ou dinheiro – fá-lo, não no interesse geral da massa, mas no seu próprio.»

Após algumas considerações sobre os principais tipos de castas – religiosas, capitalista e militares – Bento Caraça conclui condenando sem apelo

«a detenção da cultura como monopólio de uma elite»

e preconiza insistentemente que se deve promover

«a cultura de todos e isso é possível, porque ela não é inacessível à massa; o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável e a cultura é exactamente a condição indispensável desse aperfeiçoamento progressivo e constante

E Bento Caraça prossegue:

«Compreendendo a cultura assim e não como um conjunto de ideias que estão escritas nos livros e que os estudantes têm que decorar não se sabe bem para quê, quais dever ser os seus objectivos e que formação mental deve procurar conseguir no homem?

Deve, em primeiro lugar, dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade.»

A ideia de que o ser humano é indefinidamente aperfeiçoável, defendida por Karl Marx, para quem a cultura “compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, estéticas e materiais encontradas no homem”, foi, e é, como não podia deixar de acontecer, ferozmente combatida pelos fascistas, que negam o valor da ciência para a libertação humana.

Assim, segundo as próprias palavras de Mussolini,

«O fascismo repele o mito felicidade e do progresso indefinido … Ele não acredita na possibilidade da “felicidade sobre a terra”, como pretendia a literatura dos economistas do século XVIII»,

e, segundo as próprias palavras de Hitler,

«O homem não deve nunca cair no erro de acreditar que atingiu verdadeiramente a dignidade de senhor e dono da natureza.»

Enquanto que os fascistas, em Portugal, decretavam que “ler, escrever e contar é suficiente para a maioria dos portugueses” e que “o povo português … não sente a necessidade de saber ler”, e os fascistas do país vizinho chegavam ao ponto de proclamar “Morra a inteligência” e “Viva a morte!”.

Na Universidade Popular de Setúbal, Bento Caraça sintetizou:

«Cultura e liberdade identificam-se – sem cultura não pode haver liberdade, sem liberdade não pode haver cultura

Esta mesma ideia aparece em várias intervenções de Bento Caraça, nomeadamente na conferência “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do nosso Tempo”, realizada em 25 de Maio de 1933, a convite da União Cultural “Mocidade Livre”, onde refere que

«A aquisição da cultura significa uma elevação constante, vivida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.»

Em 10 de Abril de 1935, numa conferência intitulada “Escola Única”, realizada na Sociedade de Estudos Pedagógicos, Bento Caraça esclarece que

«O direito à cultura deve ser realmente reconhecido como direito inerente ao homem e não como um favor, mais ou menos disfarçado, da administração pública.»

E afirma ainda que

«O desenvolvimento harmónico da personalidade é incompatível com a sujeição a condições materiais precárias, ele pressupõe aquele salto do reino da necessidade para o reino da liberdade, de que falava Frederico Engels.»

Identificando cultura e liberdade, Bento Caraça, infatigável militante da cultura, foi naturalmente infatigável militante da liberdade: participou activamente nos movimentos contra os governos fascistas de Salazar, nos movimentos reivindicativos das liberdades democráticas, tendo sido um prestigiado dirigente do Movimento de Unidade Democrática; desenvolveu uma acção permanente em prol da unidade de todos os antifascistas, revelando uma capacidade invulgar para encontrar os pontos de acordo em posições aparentemente divergentes.

O seu pensamento e a sua acção são de uma coerência exemplar e mostram um optimismo esclarecido, proveniente da solidez da sua formação cultural e política, proveniente da profunda confiança que depositava no homem.

Dos confins da história, segundo palavras suas, caminham, ao encontro do homem de hoje, aquelas correntes fecundantes que hão-de fazer dele o homem novo, o criador da sociedade nova – a sociedade onde se extinguirão naturalmente as diferenças entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais, a sociedade onde não mais haverá exploração do homem pelo homem; numa palavra, a sociedade socialista.

Meus Amigos!

Bento Caraça tinha plena consciência de que a sobrevivência da espécie humana exige a acção comum, exige a solidariedade entre todos os trabalhadores, manuais e intelectuais – solidariedade que nasce da própria evolução das diversas formas de actividade humana, que aproximam uns dos outros, os trabalhadores manuais e os trabalhadores intelectuais; solidariedade que se reforça pelo reconhecimento de que os trabalhadores manuais e os trabalhadores intelectuais têm os mesmos inimigos.

Na verdade, os que negam aos operários e camponeses o direito ao ensino e à cultura, os que fecham as escolas aos filhos dos trabalhadores, são os mesmos que lançam milhares e milhares de professores para o desemprego; os que exploram a classe operária por conta do capitalismo, são os mesmos que negam créditos à investigação científica fundamental e querem reduzir a actividade científicaa meras aplicações tecnológicas de segunda classe; os que apoiam o fascismo – a ditadura terrorista dos monopólios, especialmente dirigida contra as classes trabalhadoras – são os mesmos que, de 1936 a 1942, mantiveram fechadas todas as escolas normais do País, são os mesmos que, em 1937, extinguiram as escolas oficiais infantis, são os mesmos que reduziram o ensino primário a um nível humilhante, são os mesmos que tantas vezes invadiram as escolas, perseguiram, espancaram e expulsaram professores e estudantes democratas, são os mesmos que instalaram uma censura omnipresente; os que agora aplaudem os assaltos às UCPs do Alentejo e o lançamento de cães polícias contra os trabalhadores alentejanos, são os mesmos que defendem a sujeição às imposições do imperialismo, são os mesmos que comandam a recuperação fascista no aparelho de Estado e nas Escolas

Por detrás daqueles que atentaram contra a vida de militantes operários, por detrás daqueles que incendiaram e destruíram sedes de sindicatos operários e sedes de partidos progressistas e por detrás daqueles que realizaram atentados bombistas contra a Faculdade de Economia do Porto, estão os mesmos indivíduos sem pátria e sem rosto ao serviço do fascismo e do imperialismo.

Bento Caraça tinha, de facto, plena consciência de que os trabalhadores intelectuais e os trabalhadores manuais têm os mesmos inimigos; tinha, de facto, plena consciência de que, actualmente, a classe autenticamente revolucionária é a classe operária, classe cuja particularidade é a de não ser exploradora, classe cujo interesse converge com o interesse do pleno desenvolvimento da ciência. Por isso, tal como fez Paul Langevin, Bento Caraça abraçou a causa do socialismo.

Se fosse vivo, Bento Caraça estaria, neste momento, ao lado de quantos defendem a Constituição da República, ao lado de quantos defendem as conquistas de Abril.

Amigos!

A defesa da Constituição da República, a defesa das conquistas de Abril exige a unidade de todos os antifascistas e, muito especialmente, a unidade de acção dos principais obreiros da Constituição – o Partido Socialista, o Partido Comunista e o Movimento Democrático Português.

Em homenagem a Bento Caraça, é necessário fazermos todos os esforços para que representantes dos partidos operários – do Partido Comunista e do Partido Socialista – e de outras organizações democráticas se reúnam à volta de uma mesa, discutam os principais problemas nacionais, com vistas à elaboração de um programa mínimo de acção comum para a defesa da Democracia, contra as tentativas de assalto ao poder, pela direita reaccionária.

Em homenagem a Bento Caraça, é necessário que o Partido Socialista e o Partido Comunista, na Assembleia de República, cheguem a um entendimento urgente para impedir que o Governo do País seja entregue a um grupo de direita, onde não faltam, talvez, reaccionários mais ou menos comprometidos com o fascismo. Não basta, como é evidente, reconhecer que o actual Governo é o mais conservador após o 25 de Abril. É preciso substituí-lo, quanto antes, por um governo autenticamente democrático, que defenda as conquistas de Abril.

Em homenagem a Bento Caraça, é preciso, com urgência, pôr cobro à violência desencadeada no Alentejo e defender a reforma agrária. É preciso impedir que a terra seja criminosamente tirada a quem a trabalha para ser entregue a quem nunca a trabalhou.

Em homenagem a Bento Caraça, é preciso denunciar o lançamento de cães polícias contra os trabalhadores alentejanos, como um crime a ser julgado, pelo menos, por um Tribunal de Opinião Pública, como um atentado grave contra os direitos do homem. É preciso denunciar o lançamento de cães policias contra os trabalhadores alentejanos, como uma prática fascista, como uma tentativa única de impor, contra as leis do País e contra a moral do nosso tempo, o “direito de propriedade sobre o homem”, como se estivéssemos no tempo dos regimes esclavagistas.

Amigos socialistas e amigos comunistas!

Em homenagem a Bento Caraça, vamos todos juntos participar na manifestação convocada pelos trabalhadores do Porto, para o 1º de Dezembro.

Em homenagem a Bento Caraça, vamos todos unir-nos para acabar com a recuperação fascista, onde quer que ela se manifeste, vamos todos unir-nos para defender a Constituição e abrir caminho ao exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras.

Viva a Unidade Antifascista!

José Morgado