quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

A Propósito do Descerramento do Retrato do Professor Ruy Luís Gomes

A PROPÓSITO DO DESCERRAMENTO DO RETRATO DO ANTIGO REITOR DA UNIVERSIDADE DO PORTO, PROF. RUY LUÍS GOMES

Nesta sessão, em que se procede ao descerramento do retrato do antigo Reitor, Professor Ruy Luís Gomes, julgamos oportuno reflectir um pouco sobre o que foram a sua vida e a sua obra.

Publicou mais de 70 trabalhos de investigação e divulgação matemática e de proclamação insistente da necessidade nacional de apoiar e defender a investigação científica; mas não se limitou a elaborar e publicar artigos e livros sobre problemas da Teoria da Relatividade, Fundamentos Matemáticos da Mecânica Quântica, Teoria da Medida e Integração, domínios em que mais trabalhou.

Preocupou-se também em criar condições propícias ao trabalho científico de outros professores e investigadores, especialmente dos mais jovens.

Promoveu a realização de cursos não curriculares e conferências sobre temas actuais de Matemática e Física; por exemplo, em 1941 – 1942, promoveu:

- várias conferencias de António Monteiro sobre “Topologia”;

- conferência de Manual Valadares sobre “Os Novos Elementos da Família do Rádio”;

- curso de Manuel Gonçalves Miranda sobre “Cálculo Tensorial e algumas das suas aplicações”;

- conferências de Marques da Silva sobre “A Materialização da Energia” e sobre a “Fissão dos Núcleos”;

- conferências de Bento Caraça sobre a “Noção de Infinito em Matemática – Aspecto Filosófico e Aspecto Matemático

Numa nota publicada na Gazeta de Matemática, em Janeiro de 1942, o Professor Ruy Luís Gomes expõe os seus objectivos ao promover estes cursos e conferências:

«Por um lado, no plano científico, temos a intenção de facilitar aos estudiosos as técnicas e as vias de acesso aos problemas de maior actualidade Matemática e das suas Aplicações. Por outro lado, desejamos integrar os problemas da Matemática no movimento geral da Ciência, numa primeira tentativa de sistematização das íntimas relações que hoje existem entre os três domínios – o da Matemática, o da Física e o da Biologia. Finalmente, num plano ético, desejamos criar um ambiente de trabalho, um “clima” e um estímulo, como resultante da cooperação de todos numa tarefa que transcende o interesse imediato de cada um e traduz uma consciência colectiva: a de que pertencemos a uma Universidade.

E termina, dizendo:

«E com uma originalidade mais ou menos marcada e um maior ou menor poder sistematização, conforme a maneira de ser de cada um de nós, todos podemos viver com igual intensidade esta afirmação colectiva de vontade, de tenacidade e de solidariedade.»

Esta doutrina consta também da carta que, em 11 de Outubro de 1941, Ruy Luís Gomes dirigiu ao Presidente do Instituto para a alta Cultura, solicitando a criação do Centro de Estudos Matemáticos do Porto, o que veio a acontecer em Fevereiro de 1942.

Nessa carta, insiste na necessidade nacional de se criar o Centro, porque, diz ele,

«de outro modo, se perdem os nossos melhores valores e se compromete, gradual mas fatalmente, a nossa maior e mais legítima aspiração – a de elevar a Faculdade à categoria de verdadeira Escola.»

O Centro passou naturalmente a ser um lugar de convívio científico dos docentes Ruy Luís Gomes, Almeida Costa, Neves Real, Manuel Miranda, Manuel Barros, Pereira Gomes, entre outros, e dos estudantes mais interessados em Matemática e Física Teórica, orientado inicialmente por Guido Beck e, posteriormente, por Alexandre Proca.

Entretanto, Ruy Luís Gomes apoiou as iniciativas de António Monteiro visando o fortalecimento do movimento matemático português, tais como a criação de Clubes de Matemática, a criação das revistas “Portugaliae Mathematica” e “Gazeta de Matemática”. Os clubes tiveram uma existência efémera, mas a “Gazeta de Matemática” publicou-se durante mais de 35 anos e a “Portugaliae Mathematica”, actuante e actualizada, é, ainda hoje, a única revista portuguesa exclusivamente dedicada à publicação de originais de Matemática.

Colaborou na fundação da Sociedade Portuguesa de Matemática, que teve uma vida muito difícil durante a ditadura, chegando mesmo um ministro, dito da Educação, a expedir uma circular proibindo a realização de qualquer conferência promovida pela Sociedade Portuguesa de Matemática, em qualquer dependência do seu Ministério. Mas, hoje, a Sociedade Portuguesa de Matemática existe, publica o seu Boletim, promove a realização de cursos, conferências, Encontros Nacionais, Encontros Regionais, etc.

Colaborou na fundação da Tipografia Matemática, que, durante dezenas de anos, prestou serviços inestimáveis à publicação de revistas e livros científicos.

Colaborou com António Monteiro e Mira Fernandes na fundação da Junta de Investigação Matemática, com os seguintes objectivos:

1) Promover o desenvolvimento da investigação matemática;

2) Realizar os trabalhos de investigação necessários à economia da Nação e ao desenvolvimento das outras ciências;

3) Sistematizar e coordenar a inquirição dos matemáticos portugueses;

4) Vincular o movimento matemático português com o dos outros países e, em especial, com o dos países ibero-americanos;

5) Despertar na juventude estudiosa portuguesa o entusiasmo pela investigação matemática e a fé na sua capacidade criadora.

O artigo, publicado na gazeta de Matemática em Dezembro de 1944, em que António Monteiro expôs os objectivos da Junta de Investigação Matemática, terminava pelas seguintes palavras:

«Quando os matemáticos portugueses, serem solicitados, sem serem forçados, mas animados do grande desejo de servir a nação, fundaram a Junta de Investigação Matemática, disseram ao país: para cumprir os nossos deveres, estamos presentes.»

No entanto, pouco tempo depois, alguns dos matemáticos cientificamente mais activos viam-se forçados a sair do País, porque aqui não tinham conseguido uma ocupação remunerada. António Monteiro, doutorado em França nem sequer como assistente entrou numa Universidade portuguesa e acabou por aceitar um convite para a Universidade do Rio de Janeiro. Por motivo análogo, Hugo Ribeiro viu-se forçado a ir trabalhar para os Estados Unidos. Pereira Gomes, doutorado nesta Universidade do Porto, não viu renovado o seu contrato e foi para França com uma bolsa francesa e, posteriormente, para Recife.

Em 1947, deu-se a grande ofensiva da ditadura contra as Universidades e muitos docentes foram expulsos (sobretudo, matemáticos, físicos e médicos) e vários recém-formados, com boa preparação matemática, não foram admitidos como assistentes.

Demitido do seu lugar de professor catedrático desta Universidade, perseguido pela PIDE, várias vezes preso, julgado e condenado pelos Tribunais Plenários de Lisboa e Porto, o Professor Ruy Luís Gomes continuou a trabalhar em Matemática e intensificou o seu combate, em termos legais, contra a ditadura, pelas liberdades democráticas, pela elevação do nível de vida do povo português, pela independência nacional e pela paz.

Alargou inclusivamente o campo da sua actividade cultural. Assim, em colaboração com Neves Real, participou no Congresso Nacional de Filosofia, realizado em 1955, em Braga, apresentando uma comunicação intitulada: “De Poincaré ao Intuicionismo Actual na Crítica dos Fundamentos da Matemática; Reflexos no Pensamento Filosófico e Matemático Português”, onde se dá o devido relevo ao pensamento filosófico de Sampaio Bruno. Em 1956, publicou um opúsculo “A Revolução Republicana de 31 de Janeiro”, cujo valor, como trabalho de História, não tenho condições para avaliar e, por isso, recorro ao depoimento do historiador Joaquim Barradas de Carvalho, que escreveu o seguinte:

«… encontramos, no estudo sobre a Revolução Republicana de 31 de Janeiro mais duas facetas da sua riquíssima personalidade. A primeira, de todos bem conhecida, ligada ao cidadão português Ruy Luís Gomes; ao civismo impoluto, em quem os imperativos de ordem cívica e política obedecem sempre, e conjuntamente a imperativos de ordem científica e de ordem ética. A segunda faceta revelada pelo estudo citado revela-nos, de uma maneira que diríamos insólita, talvez o historiador de mais elevado nível que se tenha ocupado de problemas da vida portuguesa contemporânea. A análise estrutural e conjuntural do momento da Revolução de 31 de Janeiro revela-nos um historiador de vanguarda.»

Também o Professor Ruy Luís Gomes, à semelhança de tantos dos seus amigos e companheiros, em consequência das muitas perseguições sofridas, teve de sair da sua pátria, em Setembro de 1958, e aceitar o convite vindo da Universidade de Bahia Blanca (Argentina), onde já se encontrava, há anos, António Monteiro.

Em 1962, foi trabalhar para Recife, para a Universidade Federal de Pernambuco, onde se encontravam, há alguns anos, Zaluar Nunes, pereira Gomes e eu próprio.

Em Bahia Blanca em Recife, fez amigos e formou matemáticos.

Após a Revolução do 25 de Abril, pôde, enfim, regressar à Pátria, pôde rever a sua querida cidade do Porto e, na Praça Central da Cidade, foi aclamado Reitor da Universidade do Porto, 27 anos depois de ter sido compulsivamente e criminosamente afastado do ensino universitário pelo governos ditatoriais de Salazar e Caetano.

Pelos serviços prestados à Universidade, durante o seu Reitorado, foi-lhe atribuído, no dia do seu jubileu, o título de Reitor Honorário da Universidade do Porto.

Pelos serviços prestados à Universidade Federal de Pernambuco, foi-lhe atribuída uma medalha pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Pela sua luta pela Democracia, foi-lhe atribuído o grau de Grande Oficial da Ordem da Liberdade.

Soube ser Professor.

Soube ser Reitor.

Soube ser Cidadão.

Bem mereceu a homenagem que, neste momento, é prestada à sua memória.

Reitoria da Universidade do Porto, 6 de Junho de 1988.

José Morgado

Centro de Matemática

Faculdade de Ciências

Universidade do Porto