terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Em Defesa da Constituição

Em Defesa da Constituição

Amigos e Companheiros

Dentro em pouco o plenário da Assembleia da República vai ocupar-se da revisão da Constituição.

A composição actual da Assembleia da República é fortemente favorável à direita, que detém maioria absoluta de deputados. No entanto, essa maioria é, por si só, insuficiente para que a direita possa impor a sua vontade no processo de revisão da Constituição. Com efeito, o art.º 288º da Constituição da República exige que as alterações à Constituição sejam aprovadas pela maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções, e o partido do governo não dispõe de tal maioria, a não ser que a direcção do Partido Socialista decida, contra a própria doutrina socialista, contra a opinião de alguns dos seus quadros mais destacados, contra o seu próprio eleitorado, juntar os seus votos aos daqueles que, de há muito pretendem acabar com as nacionalizações e com o sector público da economia, destruir a reforma agrária, varrer da Constituição todas as referências aos socialismo, governamentalizar a comunicação social, manipular a legislação eleitoral para falsear a representação proporcional e diminuir os direitos dos trabalhadores tão duramente conquistados na luta contra o fascismo.

Há uma contradição flagrante em quem, por um lado, denuncia em altos brados a ocupação nacional das estruturas da administração, levada a cabo pelo PSD, e, por outro lado, procura, mais ou menos secretamente, estabelecer acordos, com o mesmo PSD, para alterar a Lei Fundamental do País, num sentido contrário a algumas das grandes conquistas de Abril.

Há uma contradição flagrante em declarar publicamente o PSD como principal adversário e, ao mesmo tempo, comprometer-se com o PSD a aprovar alterações que podem danificar ou desfigurar a Constituição.

Tais contradições dão a sensação desagradável de que certas tomadas de posição aparentemente combativas, serão somente discursos demagógicos para efeito de colher dividendos políticos imediatos, quando o que, na realidade, conta são os compromissos porventura assumidos com a direita detentora do poder.

Tais contradições chegam a parecer fruto de uma duplicidade política que nós, em princípio, recusamos admitir que exista em antigos companheiros da resistência antifascista.

*

Como se sabe, a Assembleia Constituinte, eleita em 25 de Abril de 1975, aprovou, na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, a Constituição da República. Votaram a favor todos os Deputados, com excepção apenas dos 15 Deputados do CDS.

Pouco depois, a direita iniciou um ataque sistemático à Constituição; um dos motivos desse ataque é devido ao facto de a Constituição visar ao Socialismo.

A verdade, porém, é que de uma forma ou de outra, os projectos de Constituição apresentados pelos partidos da direita também, a seu modo, preconizavam o socialismo!

Assim, o PPD (actual PSD), no preâmbulo do seu projecto, dizia que,

«A Assembleia Constituinte eleita livremente pelo povo português no dia do 1º aniversário da Revolução que libertou da ditadura, da pressão e do colonialismo.

(…)

Afirma a vontade do povo português de construir uma sociedade mais justa, mais livre, mais fraterna, da qual sejam abolidas todas as formas de opressão, de exploração e de privilégio, correspondente aos ideais do socialismo personalista;»

E no art.º 1, n.º 1, desse projecto, proclamava:

«Portugal é uma República independente e democrática, que se baseia na dignidade da pessoa humana, na solidariedade e no trabalho para construir uma sociedade socialista.»

No art.º 67, n.º 1, o PPD preconizava que,

«(…) o Estado e outras entidades públicas, na fase de transição para o socialismo, devem controlar gradualmente as instituições financeiras, os solos e outros recursos naturais, as indústrias fundamentais para a defesa nacional, as actividades de carácter monopolista e os sectores básicos da economia nacional, designadamente através da nacionalização ou apropriação pública das unidades produtivas.»

E no art.º 70, n.º 1, defendia que,

«A Reforma Agrária será um meio fundamental da sociedade socialista, enquanto deve assegurar condições de igualdade efectiva no meio rural e por a terra e a produção agrícola ao serviço do povo português.»

Por outro lado, o CDS votou a favor do art.º 1 da Constituição de 1976, que proclama:

«Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.»

E na declaração de voto correspondente a este artigo, o Presidente do CDS afirmou:

«O grupo parlamentar do CDS deseja declarar que votou o Artigo 1º, porque a referência ao objectivo da transformação da sociedade numa sociedade sem classes consta da declaração de princípios do CDS publicada em 19 de Julho de 1974.»

No preâmbulo do seu projecto, dizia-se a certa altura:

«Assim é que a Revolução viu afirmar também os princípios da democracia económica e social, na via para um socialismo português, que na na precisa reivindicação de originalidade supera e rejeita, a um tempo, os capitalismos individualistas e os socialismos totalitários.»

Como se vê, o próprio CDS se pronunciava a favor de um “socialismo português” que, embora se não dissesse o que era, era algo que se chamava “socialismo” e pronunciava-se também contra o que chamou “socialismos totalitários”, tentando tirar vantagem da ideologia propagandeada pelo imperialismo e aceite pelas ditaduras salazarista e franquista, que, após a derrota do fascismo na 2ª Grande Guerra, passaram a chamar de “totalitários” os regimes da Europa de Leste.

Mas o totalitarismo não se encontra do lado do socialismo e a direita portuguesa sabe isso muito bem.

Os fascistas reivindicaram orgulhosamente o qualificativo “totalitário” para os seus próprios regimes.

Como se sabe, em Junho de 1924, foi assassinado, por fascistas italianos, o socialista Giacomo Matteotti [?]. Nesse assassinato estavam comprometidos alguns dos mais altos figurões fascistas incluindo colaboradores directos de Mussolini.

No seu esforço para salvar o regime da indignação causada pelo assassinato – indignação que provocou o afastamento de muitos liberais, como Benedetto Crore, que até então tinham acompanhado o movimento fascista -, Mussolini estabeleceu uma ordem totalitária, em que o Estado era completamente identificado com o partido fascista, por sua vez identificado com o seu líder, o próprio Mussolini.

Conforme conta Paul Guichonnet no seu livro “Mussolini et le Fascisme”, em 3 de Janeiro de 1925, Mussolini reivindicou altivamente perante os Deputados, a responsabilidade do delito e, no decurso desse ano, consolidou o seu poder por uma série de medidas que o afastavam cada mais das normas constitucionais. As administrações foram depuradas, a liberdade de imprensa praticamente reprimida. Em 24 de Dezembro de 1925, Mussolini, que já era presidente do Grande Conselho fascista desde 30 de Outubro de 1922, passou a ser chefe do governo com poderes mais concentrados e mais autoritários A ditadura estava definitivamente estabelecida.

A divisa adoptada na Itália “Tudo pelo Estado, nada contra o estado” foi adaptada pelos fascistas portugueses para “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”.

Numa conferência realizada na Sala dos Capelos, em 28 de Maio de 1936, intitulada Princípios Essenciais do Estado, Mário de Figueiredo, que foi Ministro da Educação e desempenhou, no Estado Novo, funções da maior responsabilidade, declarou:

«…o estado não pode deixar de ter uma doutrina e creio que essa há-de ser totalitária, há-de abranger todas as formas de actividade e até a própria concepção de vida. Aqui o Estado não impõe escravizando a vontade; propõe orientando a educação por forma a despertar na alma de todos uma ideologia idêntica à sua própria ideologia.»

Nesse mesmo dia, 28 de Maio de 1936, no parque Eduardo VII, falando na inauguração de uma exposição comemorativa do X aniversário do 28 de Maio, Salazar proclamou:

«…apenas podemos dizer que manteremos as nossas posições e empregaremos a mesma táctica: ter sempre razão; dispor da força; conservar do nosso lado a iniciativa da acção política. Julgo que nestas condições, estará sempre assegurada a vitória.»

Como vemos, o totalitarismo foi também abertamente reivindicado pela direita portuguesa.

*

Nos seus ataques à Constituição, alguns direitistas recorreram a Jean Jacques Rosseau, à procura de argumentos favoráveis à revisão por meio de referendo. Rosseau, no seu livro “Contrato Social”, publicado em 1762, escreveu, entre muitas coisas, que,

«a soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral e a vontade geral não se representa; ela é ela própria ou é outra; não há meio termo. Os deputados do voto não são nem podem ser seus representantes.»

Ora, Pelo menos neste ponto, a história não deu razão a Rousseau. Os deputados do povo, onde quer que existam, são seus representantes mais ou menos fiéis e é claro que não é com argumentos como este que os direitistas conseguem justificar a tese de que a revisão da Constituição deverá ser feita por meio de referendo.

Outros direitistas recorrem a citações de Emmanuel joseph Sieyès e Carl Schmitt para defenderem uma revisão inconstitucional da Constituição, passando por cima dos limites materiais da revisão preconizados no art.º 290º da nossa Constituição, artigo que impõe que as leis de revisão constitucional respeitem, além da independência e unidade do Estado, outros valores, como, por exemplo:

- Os direitos, liberdades e garantias do cidadãos;

- Os direitos dos trabalhadores, das Comissões de trabalhadores e das associações sindicais;

- A planificação democrática da economia;

- O sufrágio universal, directo, secreto e periódico, na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como do sistema de representação proporcional;

- O princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e latifúndios;

- A participação das organizações populares de base no exercício do poder local.

Ora alguns destes valores causam grandes engulhos à direita. Por isso, a direita quer acabar com o art.º 290, que marca a identidade da nossa Constituição. Por isso, recorre a argumentos até de Carl Schmitt, teórico do Estado Corporativo, que condenou o pluralismo, defendeu a bipolarização e o totalitarismo, foi consultor de jurídico de Hindenburg e de Hitler! Defensor do golpe de estado, o seu pensamento influenciou os vários fascismos do século XX.

Há direitistas que pretendem varrer da Constituição tudo que, em seu entender, é ideologia socialista, através de uma dupla revisão: numa primeira revisão, alterariam o art.º 290, alegando que ele não se incluía a si próprio na lista dos limites materiais da revisão. Depois disso, numa outra revisão, libertos dos limites impostos pelo art.º 290, ficariam à vontade para alterarem a Constituição como entendessem.

Outros direitistas acham que a dupla revisão é um subterfúgio jurídico, um mero truque de aparência jurídica.

Os que têm pressa pretendem agir como se o art.º 290 não existisse.

Invocando Sieyès, que, no seu opúsculo intitulado “Que é o terceiro estado?”, escreveu:

«Não somente a nação não está submetida a uma Constituição, como não a pode estar, não o deve estar, o que equivale ainda a dizer que não está.»,

Aqueles direitistas acham que a Constituição não pode limitar o poder de revisão.

As concepções tão aparentemente radicais, tão aparentemente democráticas, de Sieyès, conduziram Sieyès a envolver-se num golpe de estado, conduziram afinal à ditadura de Napoleão Bonaparte; e conduzem alguns direitistas portugueses, a uma teoria de revisão inconstitucional da Constituição.

Há mesmo quem chegue a proclamar que o art.º 290 não existe e quem chegue a proclamar que tal artigo e a própria Constituição são inconstitucionais! Declaram até que a Constituição deve ser abandonada. Pretendem fazer crer que a marcação de limites materiais de revisão é uma singularidade da nossa Constituição. Fingem ignorar que outras Constituições marcaram ou marcam limites materiais de revisão.

Por exemplo, a Constituição Portuguesa de 1911 no seu art.º 82 § 2, impedia que fosse abolida a forma republicana de governo.

Tal proibição consta também da Constituição Italiana, art.º 139, e da Constituição Francesa, art.º 89.

A Constituição da Alemanha Ocidental, no art.º 79, diz que é vedada a revisão no tocante à organização da federação em Estados, ao princípio da interferência dos Estados na feitura das leis federais e aos princípios expressos no art.º 1, que trata dos direitos fundamentais, e no art.º 20, que caracteriza a República Federal Alemã como um Estado Federal, democrático e social.

A Constituição Argelina, no seu art.º 195, determina que nenhum projecto de revisão constitucional pode afectar a forma republicana de governo, a religião do Estado, a opção socialista, as liberdades fundamentais do homem e do cidadão, o princípio do sufrágio universal, directo, e secreto, e a integridade do território nacional.

Portanto, a existência de um artigo da Constituição que marque limites materiais de revisão não é uma singularidade da nossa Constituição, como certos direitistas pretendem fazer crer.

*

Amigos!

A Constituição de 1976 corre o perigo de ser desfigurada pela revisão que a direita quer realizar.

Temos de a defender.

Devemos apelar para os nossos amigos socialistas a fim de que reconsiderem a sua posição e não dêem à direita os votos de que ela precisa para fazer aquela revisão que só à direita interessa.

José Morgado,

11/03/89 – Auditório da Reitoria da U.P.

Sem comentários: