sábado, 15 de dezembro de 2007

Carta do Vice - Reitor da Universidade do Porto ao Brigadeiro Vasco Lourenço

Carta do Vice – Reitor da Universidade do Porto ao Brigadeiro Vasco Lourenço

Ex. mo Senhor

BRIGADEIRO VASCO LOURENÇO

Dig.mo Comandante da Região Militar

De Lisboa – Quartel General

LISBOA

Porto, 13 de Maio de 1976

Ao falar, durante uma visita à Escola Prática de Administração Militar, recentemente realizada, perguntou V. Ex.ª. :

«Como é possível, neste momento, contrariamente ao estabelecido na Constituição Portuguesa, o fascismo ter voz neste país, através dos mais variados meios de comunicação social, que não deixam de aparecer à luz do dia, com uma impunidade escandalosa mercê da quase passividade das entidades a quem pertence actuar? Sim, como foi possível terem-se cometido tantos erros que provocaram a actual situação?

(O Primeiro de Janeiro, 8 – 5 – 1976).

Realmente, Senhor Comandante da Região Militar de Lisboa e Senhor Conselheiro da Revolução, o fascismo continua a ter voz neste país, mas não apenas através dos mais variados meios de comunicação social.

Tem voz através das organizações terroristas que continuam agindo com a maior impunidade; tem voz através de certas organizações partidárias que continuam a desestabilizar o sistema, apelando, não contra o fascismo, mas contra o comunismo procurando atribuir as conquistas revolucionárias autenticamente nacionais à preocupação de defender interesses de estados socialistas, ao mesmo tempo que pretender fazer passar por autenticamente nacionais os interesses de estados capitalistas; tem voz através de certas organizações que se apresentam como não partidárias, mas se pronunciam conforme os desejos de Kissinger, contra a participação de comunistas no governo português, chegando a ameaçar com desordens e até com aquilo a que chamam a prática de justiça por suas próprias mãos, caso certas reivindicações, contrárias à Reforma Agrária e à lei do arrendamento rural, não sejam satisfeitas pelo governo; tem voz através de comícios onde se ataca a acção e até a honorabilidade pessoal do Ministro da Agricultura, Eng.º Lopes Cardoso, destacado dirigente do Partido Socialista; tem voz através de desordeiros organizados que agridem os participantes de festas de confraternização de antifascistas, como por exemplo, ainda há dias fizeram em Murça contra militantes do Partido Socialista; tem voz através de campanhas sistemáticas contra o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Major Melo Antunes, campanhas que visam pôr em causa a política externa de Portugal, como nação livre e independente; tem voz através das campanhas de boatos, que encontram eco na imprensa estatizada, contra os novos países de expressão portuguesa, a fim de diminuir uma das maiores conquistas revolucionárias – a descolonização – por meio da qual estamos de facto dando “novos mundos ao mundo”, continuando assim, em termos modernos, aquilo que no passado nos fez realmente grandes; tem voz através de todas as tentativas de divisão dos portugueses em retornados e não retornados, em civis e militares, em portugueses do norte e portugueses do sul e as tentativas de divisão dos militares revolucionários em gonçalvistas e antigonçalvistas, quando é certo que a única divisão a ter em conta é a divisão entre os exploradores e os explorados, e a sua expressão no plano político que é ainda, neste momento, a divisão entre fascistas e antifascistas.

Através de tudo isto, Senhor Comandante, o fascismo tem voz neste país; e tem voz, unicamente porque os antifascistas parece não terem tomado ainda consciência do perigo que o fascismo representa, parece confundir derrota do fascismo no 25 de Abril com destruição do fascismo, parece menosprezarem a capacidade de manobra do fascismo, a capacidade de se disfarçar e de se reagrupar, a capacidade de se ligar a interesses imperialistas contra a sua pátria. Os antifascistas, na realidade, não compreenderam que, sem destruir as bases económicas do fascismo, não se destrói o fascismo e alguns já “decretaram” que a revolução acabou quando ela mal começou.

Mas não são as vias apontadas as únicas que permitem a acção dos fascistas contra a democracia.

Uma via importante de acção é a via judicial. A utilização do aparelho judicial montado durante quase meio século de fascismo, e que continua praticamente intacto, é um processo a que estão recorrendo os fascistas e aparentados, a que estão recorrendo pessoas que, de algum modo, colaboraram na repressão fascista. É o caso, por exemplo, da acção movida contra a Universidade do Porto pelo advogado Sr. Dr. Fernando de Matos.

Este Senhor advogado havia sido encarregado pelo último dos Reitores da Universidade do Porto, durante o regime fascista, de instaurar processos disciplinares contra estudantes antifascistas.

De facto, nesta Universidade, e para honra da juventude estudantil, estava em 1973 bem acesa a luta contra o fascismo e contra a guerra colonial, a luta contra o autoritarismo e contra as estruturas arcaicas que serviam o fascismo.

A fim de tentar suster a onda de revolta estudantil, já não era suficiente, no opinião dos senhores que então dirigiam ou pensavam dirigir os destinos da Universidade, o recurso aos Tribunais, por os considerarem demasiado morosos e demasiado sensíveis aos ventos de mudança. Na opinião desses senhores, legítimos herdeiros dos bons velhos tempos inquisitoriais, era preciso instalar, na própria Universidade uma máquina repressiva eficaz, de funcionamento contínuo, que obedecesse cegamente à voz do dono Marcelo Caetano, quer a ordem dele emanada se fizesse ouvir por intermédio do seu principal porta – voz para assuntos educacionais – o ministro Veiga Simão – quer por intermédio do seu principal guarda-costas – o polícia Silva Pais.

Além disso, era preciso que essa máquina funcionasse sem a publicidade, por vezes comprometedora dos Tribunais que, mesmo quando fascistas, sempre são mais palavrosos, menos reservados que os discretíssimos Tribunais do Santo Ofício, de tão saudosa memória.

Essa máquina repressiva foi finalmente posta a funcionar com a ajuda eficiente e dedicada do advogado Sr. Dr. Fernando de Matos e do seu secretário, Sr. Delfim de Barros Gomes que, no dizer do seu patrão, expresso na queixa contra a Universidade apresentada ao Ex.mo Senhor Corregedor do Cível,

«confirmou as suas já conhecidas qualidades de integridade, honestidade, zelo, competência e lealdade.»

E é de justiça dizer-se que a máquina funcionou repressivamente bem , dada talvez a possível adesão mental e sentimental do Sr. Advogado às directrizes fascistas relativas à repressão.

Ora propondo prorrogações de suspensões de alunos por mais de 90 dias, com o argumento de que tal era necessário para prosseguir a instrução dos processos, ou propondo penas de suspensão de até um ano, não há dúvida de que o Senhor advogado se esforçou por cumprir a tarefa para que foi contratado.

É um facto que a Universidade pagou bem esses serviços, pagou bem a comodidade de ter ali à mão, pronta a entrar em acção, uma máquina de intimidação, repressiva, eficiente, com roupagem legalista.

Mas é claro que, essa máquina, para funcionar repressivamente bem, precisava de ser lubrificada e, graças ao Reitor e ao Ministro de então, essa máquina foi bem lubrificada. Assim, pelos serviços prestados desde 10 de Maio de 1973 até final desse mesmo ano, a Universidade pagou ao Sr. advogado a quantia de 326 723$50, assim distribuídos:

Instrutor (Fernando Matos) ……….260 000$00

Escrivão (Delfim Barros Gomes) … 65 000$00

Quer dizer, o salário do Sr. advogado foi, nesse período de oito meses, superior ao dobro do vencimento de um professor catedrático e o vencimento do seu secretário foi superior ao vencimento de um assistente.

Deste modo ficou claramente traduzido em numerário aquilo que o ministro do governo fascista, Veiga Simão, e a direcção da Universidade pensavam sobre o valor relativo da função docente e da função repressiva.

Mas acontece, Senhor Comandante da Região Militar de Lisboa e Senhor Conselheiro da Revolução, que esta verba de 326 723$50 não podia naturalmente ser entregue por Veiga Simão ao Reitor da Universidade a título de «pagamento de serviços prestados» ou algo semelhante.

Era preciso disfarçá-la, para que a verba aparecesse ligada a uma actividade normal de uma Universidade normal e não, como na realidade era, ligada a uma actividade suja, a uma actividade vergonhosa para qualquer instituição de ensino em qualquer lugar e em qualquer tempo – perseguição aos estudantes.

Assim, em 19 – 12 – 73, o Reitor pede por ofício ao Sr. advogado que, A BEM DA NAÇÃO, lhe mande a conta.

O Sr. advogado não fez esperar o Reitor; responde logo em 22 – 12 -73, mandando aquela conta e declarando admirador atento e grato, que os seus honorários foram

«fixados muito aquém quer dos montantes sugeridos globalmente quer dos resultados apurados por critérios parcelares»,

como concluiu após consultar, segundo diz, colegas do Porto e de Lisboa e ainda um “ilustre desembargador”, de quem não revela o nome.

Em 26 -12 -73, também A BEM DA NAÇÃO, o Reitor pede ao Director-Geral do Ensino Superior se digne promover seja dado conhecimento daquela conta ao Secretário de Estado da Instrução e Cultura.

Em 18 – 1 – 74, o ministro do governo fascista, Veiga Simão, exarou um despacho concedendo

«a importância de 350 contos a favor do Reitor da Universidade do Porto para suportar encargos com actividades no âmbito da expansão do Ensino Superior.»

E aqui está, Senhor Comandante, o disfarce arquitectado para pagar ao Sr. advogado os serviços prestados na perseguição aos estudantes antifascistas: O pagamento foi feito como se a actividade repressiva do Sr. advogado fosse, afinal, uma actividade de expansão do Ensino Superior.

Em 24 – 1 – 74, o chefe de gabinete de Veiga Simão esclarece aquele despacho, comunicando ao Reitor, ainda a BEM NAÇÃO, que o Ministro, por aquele despacho, concedeu o subsídio de 350 contos

«para pagamento ao advogado dessa Universidade».

O subdirector - Geral não deixa também de oficiar, igualmente A BEM DA NAÇÃO; responde ao ofício em que o Reitor pedia a verba para pagar ao advogado, remetendo-lhe cópia do tal despacho de Veiga Simão, de 18 – 1 – 74.

Ora, em nosso entender, Senhor Comandante, em nome de um mínimo de moralidade, é preciso para o Estado o dinheiro que o ex – ministro, o seu chefe de gabinete e o subdirector – geral desviaram da expansão do Ensino Superior para a repressão aos estudantes do Ensino Superior.

Em nosso entender, e proporcionalmente às responsabilidades dos respectivos cargos, o ex – ministro Veiga Simão, o seu chefe de gabinete e o subdirector – geral precisam ser obrigados a restituir aos cofres do Estado, quantia pelo menos igual àquela que foi utilizada contra estudantes, quando devia ser utilizada para expandir o Ensino Superior.

É preciso ainda averiguar, no Ministério da Educação, se, no tempo de Veiga Simão, a rubrica “expansão do ensino superior” era ou não um código que significava repressão aos estudantes antifascistas

Quanto à acção agora movida pelo Sr. advogado Fernando de Matos, contra a Universidade do Porto, por não lhe ter pago os serviços que prestou desde Janeiro de 1974 até ao 25 de Abril, entendemos que NADA HÁ A PAGAR.

A Universidade após o 25 de Abril, a Universidade do Estado democrático nada tem a pagar aos perseguidores de estudantes, mesmo que tenham sido, contratados pelo último dos Reitores de uma Universidade do estado fascista.

Já é um grande favor que os universitários prestam a esses senhores, se conseguirem esquecer as tarefas repressivas a que se dedicaram durante vários meses, tarefas de colaboração, voluntária ou não, com a PIDE.

Os universitários podem esquecer, mas o Conselho da Revolução não pode esquecer aqueles que colaboraram com a PIDE e ainda por cima têm o atrevimento de vir exigir judicialmente

E que pagamento!

Pelos processos que instaurou contra estudantes antifascistas, no período de Janeiro de 1974 a 25 de Abril do mesmo ano, pede aquele Sr. advogado a quantia de 257 284$50, assim distribuídos:

Instrutor (Fernando de Matos) ……….200 000$00

Escrivão (Delfim Barros Gomes) ……….50 000$00

Despesas ………………………………….………..7 284$50

Total ……………………………………………….257 284$50

Isto significa que, naquele período de quatro meses, os vencimentos do Sr. advogado subiram, passando a ser superiores ao de três professores catedráticos; os vencimentos de seu secretário subiram também, passando a ser superiores aos de um professor auxiliar.

Em nossa opinião, Senhor Comandante, esta acção é um insulto à Universidade, um insulto à própria revolução.

Nós, democratas, não podemos consentir que a Revolução se deixe enredar em processos como este. Qualquer contemporização com os fascistas conduz a deterioração da Revolução.

Por isso, à pergunta de V. Ex.ª de como é possível o fascismo ter voz neste país, nós só podemos dizer que outra coisa não é de esperar, quando se põem em liberdade os pides e os sabotadores da economia nacional, sem qualquer espécie de julgamento público; quando se deixam fugir da prisão dezenas e dezenas de pides; quando pessoas como Valadão podem escarnecer das leis e dos tribunais portugueses viajando para o Brasil, sem que os responsáveis sejam chamados a prestar contas dos seus actos; quando se reintegram juízes dos Tribunais Plenários sem que eles respondam perante o país pelas condenações que sentenciaram contra combatentes antifascistas; quando se deixa de agir contra os bombistas, salteadores e incendiários; quando se levam aos tribunais, por pretensos delitos de imprensa, antifascistas como o escritor José Cardoso Pires e se não processam os colaboradores dos antigos jornais fascistas Diário da Manhã, Voz, Época, etc; quando nem sequer se dá conhecimento ao povo de quem são os jornalistas que estavam ligados à PIDE; quando se permitem artimanhas “legais” para acarear torcionários da PIDE com antifascistas por eles torturados, como se uns e outros estivessem no mesmo plano; quando se reintegram ex – ministros fascistas como professores universitários, ainda antes de reintegrar professores que foram expulsos pelo fascismo.

Quando se permite que coisas destas aconteçam, nada é de estranhar.

Pensamos que, apesar de tudo isto, ainda é tempo de o Conselho da Revolução salvar a Revolução.

Promovendo a unidade de acção de todos os antifascistas, recuperando inclusivamente alguns que se encontram, neste momento e contra a sua própria vontade, marginalizados do processo revolucionário, defendendo a formação de um governo de esquerda, de um governo que dê ao povo garantias de respeitar a Constituição da República, metendo na ordem os fascistas e seus aliados, lutando pela independência nacional e mantendo boas relações com todos os povos, especialmente com os povos dos novos países de expressão portuguesa, o Conselho da Revolução conquistará o apoio activo do Povo e salvará a Revolução.

Porque pensamos que ainda é tempo de salvar a Revolução, pelo respeito que temos pelo Conselho da Revolução e pela consideração que nos merecem as palavras desassombradas de V. Ex.ª, proferidas na visita à Escola Prática de Administração Militar e em várias outras oportunidades, dirigimos a V. Ex.ª esta carta que, caso V. Ex.ª a isso se não oponha, tornaremos pública dentro, digamos, duma semana.

Com os melhores cumprimentos do cidadão e do Vice – Reitor da Universidade processada,

José Morgado